Quando eu era pequena, dava aula para os espíritos. Sem saber, eu dava aula para os meus amigos invisíveis. Não havia uma única criatura na varanda da minha casa e, no entanto, eu me equipava com quadro negro (nunca entendi por que chamavam de negro o quadro verde), giz de todas as cores, apagador, e ficava a falar por horas e horas para ninguém.

Dava aula de Português, Matemática, Música, e também fazia as vozes da diretora do colégio e dos pais dos alunos. Já imaginou quanta gente tinha naquela varanda? Meus pais na sala, assistindo à TV, achando que eu estava brincado de bonecas.

Sempre achei que seria professora. Tinha veneração pela minha professora da alfabetização, a tia Jenifer. Eu gostava tanto dela, que pedia a Deus para ser igualzinha a ela, até fisicamente. Pedia nas orações fervorosas de uma criança de cinco anos que eu ficasse com os dentões dela. Ela ficava sempre com a boca semiaberta. Eu pedi tanto, que fiquei com dentão.

Como o colégio oferecia somente o que hoje é a Educação Infantil, tive de sair do meu “Ursinho Astronauta”, no Rio de Janeiro. Mudei de Estado e somente quinze anos depois fui tentar rever personagens da minha infância.

A possibilidade de fazer uma regressão acordada fez o percurso esticar. Demorou uma hora para eu chegar ao colégio. Eu estava preparada para enfrentar o barulho das crianças correndo, o cheiro de tinta guache e de cola. O colégio tinha cheiro. Cheiro de lancheira. Também estava pronta para ouvir o tilintar do triângulo e o som dos demais instrumentos na sala de música, lugar onde eu mais gostava de ficar.

Ao chegar lá, meu coração acelerou, tal como acelera agora, ao lembrar da cena. Reconheci algumas coisas na rua. Procurei o portão vazado, por onde eu via minha afastar-se depois que me deixava. Mas não encontrei aquele portão. Pensei: devem ter reforçado a segurança. O Rio dos anos 70 não é o mesmo dos 90. Só isso justificava o portão de dois metros de atura, todo fechado, feito de chapa de ferro.

Parti para o portão com a pergunta engasgada. O segurança veio atender ao chamado, e eu:
– Aqui é o colégio Ursinho Astronauta, não é?.

– Ah, não. Aqui é um depósito de material de construção. Faz tempo que o colégio não funciona mais aqui.

Pense numa cena de novela interrompida para entrar os comerciais…

Mas emendei:
– E onde ele está agora?

– Não existe mais, respondeu o carrasco da novela, fechando o portão de chapa na minha cara.

Meu mundo caiu em minutos.

Nunca mais veria a tia Jenifer. A mulher que entendia minha timidez foi demolida junto com o portão vazado.
Dia desses, encontrei uma fita cassete com uma gravação feita por meu pai com um dos momentos meus como professora dos alunos invisíveis. Eu expulsava os alunos da sala e elegia dois ou três como melhores da turma. Ou seja, eu seria uma péssima professora. Autoritária e excludente. Mas, tia Jenifer não era assim. Tinha o sorriso mais lindo que já vi, que formava furinhos na bochecha, o chamado “sinal de beleza”. Dona de uma paciência incrível, ela me incentivava a ser exatamente como eu era.

Também encontrei um livro de histórias infantis com a seguinte dedicatória dela: “Liliane, sorri bastante porque o teu sorriso envergonha a muita gente grande que já não sabe mais sorrir. O teu sorriso é só teu, por isso faze dele o que quiseres. Mas, por favor, dê-me um sorriso! E que Deus permita que o conserves para sempre”. Rio, 09/12/76.

Deve ser por isso que eu hoje não sei viver sem sorrir. Porque ela pediu. Ela tinha este poder sobre mim. Enquanto minha mãe se preocupava com minha timidez, tia Jenifer orientava para que ela explorasse as melhores características, segundo sua observação: a rapidez de aprendizado e a sensibilidade para a música. Para me incentivar, ela nunca me dava 10, e, sim, 1000. Achei provas com o recadinho: “Muito bem! Você merece 1000”.

Não realizei meu sonho de ser professora. E continuo amando música, com desejo ainda não realizado de aprender piano, e fascinação por violoncelo, violino, sax, bateria…Minha sábia professora percebeu isso e disse para minha mãe estimular esta sensibilidade musical. Mas isso não foi estimulado por mamis e nem por mim. Falta a tia Jenifer para dizer que eu mereço nota mil a cada nota aprendida. É que eu ainda estou aprendendo a ser a mestra da minha vida.