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Passei por algumas horas de desespero devido a um princípio de incêndio no prédio onde moro. Nunca havia visto uma cena daquelas na vida real.

Tudo começou ao ouvir forte barulho de água, como uma torneira de tanque totalmente aberta. Procurei por toda a casa algum vazamento, e nada.

Resolvi sair para ver se o vizinho estava com algum problema, e, quando abri a porta, o primeiro susto: vi água misturada a cinzas jorrando da porta fechada do elevador e fumaça saindo do corredor.

Pensei em algum problema no próprio elevador e tive medo de alguém estar preso lá dentro, já que ouvi gritos. Aciono a administração, envio o vídeo com a cena do elevador e peço urgência. Recebo um alívio como resposta: Estamos indo.

Mas aí começou o pânico. Vizinhos correram pela escada com crianças chorando. Minhas pernas tremiam sem que eu as controlasse. Volto para o apartamento e peço calma a mim mesma.

Calma. Respira. O que preciso fazer?

Desliguei tudo das tomadas e saí pela porta de emergência.

Segundo susto: ao abrir a porta, uma grande nuvem cinza veio pra cima de mim, como que me empurrasse, cobrindo toda a minha visão. Tudo estava escuro. A luz de emergência não funcionou. Não sabia onde estava pisando, e só gritei para o nada: posso descer?

Alguém gritou de baixo: Sim, desça agora!
– Mas eu não estou vendo nada!

Não sei de onde surgiu a mão de um homem que mais parecia um muçulmano com a camisa cobrindo o rosto inteiro, que disse:

– Segura a minha mão… Calma.

Ele foi me levando até os andares mais seguros e me soltou. Quando a visão começou a clarear, saí meio atarantada, como quando brincava de cabra cega e tiravam o lenço dos meus olhos após terem me girado horrores.

– Onde estou? O que está acontecendo? Cadê minha mãe? Preciso voltar ao andar dela. Ela havia avisado que estaria fora durante a tarde, mas preciso checar.

Não permitiram ninguém subir as escadas. Ligo pra ela, e nada. Faço contatos por onde poderia ter passado. Nada. Vou aguardar e confiar de que ela não está em casa.

Agora, vou tentar saber o que aconteceu.

– Estava atrás de você, diz uma vizinha caminhando em minha direção.

– Eu estava lá em cima. O que aconteceu? Foi no elevador?

– Não, foi no apartamento acima do seu. Curto-circuito na
geladeira. O proprietário estava tomando banho e saiu muito assustado. Disseram que ele estava de cuecas, mas acho que estava nu, já que ninguém sai do banho de cuecas (risos da vizinha contando)…

Não ri. Não me importava se estava nu ou de cuecas. Saio andando sem rumo. Vejo uma mulher chorando e olhando para cima. Ela tentava acalmar sua mãe que estava sozinha na varanda do 15º andar.

Ao ouvir a sirene dos bombeiros, grito de baixo pra ela: Calma, que os bombeiros já chegaram. Fique aí.

Faço outra ronda e encontro uma mulher enrolada numa toalha, chorando e rezando com a filha adolescente. Ela se desespera quando vê fumaça saindo da varanda de sua casa e pergunta:

– Será que o fogo entrou no apartamento? Vai destruir tudo?, chorava e rezava

Eu até então não havia pensado nessa possibilidade de perder as coisas da minha casa. Olho para o alto e vejo fumaça saindo da minha varanda também.

O que vai acontecer?, pensei. Como não havia nada o que eu pudesse fazer sobre o fogo, parti para providenciar o que estava ao meu alcance:

– Vou tentar encontrar uma roupa para a senhora, calma…

Chego perto de um grupo de vizinhas que assistiam ao evento do dia. Elas compartilhavam fotos pelo whats, gravavam áudio para os grupos de amigos, criticavam a síndica e a construtora. Todas conscientes de seus direitos pelo imóvel próprio que não apresentara segurança de iluminação de emergência nas escadas e nem alarme.

– Sim, concordo com tudo isso. Absurdo mesmo. Podemos propor uma reunião depois para cobrarmos isso do condomínio, mas agora alguém pode me dar algum vestido largo para cobrir uma senhora que está só de toalha ali embaixo?

Silencio e olhares umas para as outras.

Uma quebrou o silêncio e perguntou o tamanho da senhora, pois ela é muito magra, talvez a roupa não coubesse. Outras duas nada disseram. Outra justificou que morava na torre interditada, mas teve a iniciativa de pedir para um menino de uns dez anos para ele ir buscar alguma roupa na casa da mãe dele. A criança saiu em disparada para pegar a roupa. Não perguntou o tamanho da senhora, não perguntou absolutamente nada. Simplesmente foi, agiu.

Dei as costas e fui saber com o rapaz da manutenção que estava com olhos muito vermelhos. Ela havia entrado no apartamento incendiado antes de o Corpo de Bombeiros chegar e neutralizado o fogo.

– O senhor precisa de atendimento. Vamos para a ambulância.

– Não, senhora, tem gente precisando mais do que eu, disse ele ao observar a senhora do 15º andar passando na maca com os bombeiros.

– Todos precisam do mesmo jeito (Peguei pelo braço dele e quando estávamos em direção à ambulância, alguém diz que ele não precisa ir, pois “bastava um copo de leite”. Ele, envergonhado, não foi. Tomou leite).

Um bombeiro desce com um bebê de três meses no colo e outro desce com uma criança de cerca de nove anos.

– Cadê minha filha?, chegou procurando, desesperada, a mãe da bebê. Em seguida, o pai do menino também chega. Ela, chorando pelo susto, lembra de perguntar por minha mãe. Eu digo que não consegui falar; ela deixa a filhinha de três meses nos braços dos bombeiros e, com as mãos trêmulas, tenta ligar do celular dela para a minha mãe…

Mais e mais pessoas vão chegando. Filmagens e fotos fazem eu lembrar o quanto Renato Russo é sempre atual: “Todos querem ver e comentar a novidade. Tão emocionante um acidente de verdade. Vai passar na televisão”.

O chefe da vistoria chama o grupo de moradores dos andares atingidos e começa a explicar o que aconteceu e como ficaríamos naquela noite.

– Pessoal, peço que se aproximem apenas os moradores dos andares 13º ao 15º. Depois, falarei com os demais.

A equipe da limpeza já estava tirando a água preta dos andares que ao chegar no térreo fazia uma marola passando pelos pés de todos. A preocupação de uma moradora foi certeira: “Vai molhar o tapete. Alguém enrola o tapete!”

O chefe começa explicando que estamos sem água, energia a e gás, providências iniciais de segurança, e que o acidente provavelmente foi um curto na tomada da geladeira. Disse que o morador não conseguiu utilizar o hidrante da forma correta e, por isso, foi água para todo lado, juntando-se à água do sistema automático de água acionado ao menor sinal de fumaça. Sim, isso funcionou e muito bem. Era muita água jorrando.

Neste momento, uma moradora levanta a mão:

– Eu queria saber sobre o meu apartamento!
– Pois não. Qual seu andar?
– Terceiro…

!!!!!!! (não era apenas do 13º ao 15?)

– Não houve nada do 12º para baixo, sra. Fique tranquila.

– Mas eu queria saber do meu, pois a fiação também está ruim. Aliás, este condomínio é cheio de problema, já perdi vários eletrodomésticos queimados.

– Sra, neste momento trataremos apenas dos andares atingidos. Depois, a sra pode solicitar ao condomínio uma vistoria específica para o seu.

A partir daí, a falação aumentou. Vários reclamaram de tudo. Defendendo o seu, claro.

O fiscal tenta controlar a confusão e autoriza apenas moradores dos andares atingidos a subirem para abrirem as janelas.

Subo e finalmente confirmo que minha mãe não estava em casa. Sua unidade também nada sofrera.

Subo mais um lance de escadas e chego ao meu. Coração dispara com medo de abrir a porta, sem saber o que encontraria.

Caminho calmamente pelos cômodos e agradeço. Tudo parece normal, com exceção da varanda, invadida por muita água e cinzas. Nada de mais. Gratidão por isso.

Ao descer, ouço áudio da minha empregada que já estava em sua casa, após o expediente daquele dia. Ao saber do acidente, ela voltou ao local de onde tinha acabado de sair, caminhando por dez quilômetros para checar se estava tudo bem comigo. Essas atitudes realmente me emocionam…

Outros amigos começam a ligar, pois souberam pela TV, conforme anunciou Russo. Percebo claramente quem se preocupou com as pessoas atingidas e quem queria pipocas para o espetáculo.

Passados alguns dias, o mau cheiro de fumaça nos corredores não me deixa esquecer do quanto não temos controle sobre nossa vida, do quanto estamos interligados com tudo e todos. Um curto circuito na casa de quem você nem conhece pode dar fim à sua vida.

Mas o que mais está gravado em minha mente são as cenas ao redor do acidente. As atitudes de solidariedade, apego material, fofocas, futilidade, egoísmo, lealdade e falsas amizades. Isso nem bombeiro pode apagar.