Uma música ambiente no supermercado chamou minha atenção pela repetição e pelos conselhos ao amigo sobre sua relação amorosa.

Diz assim: “Libera ela. Tá atrasando os planos do casório, do cachorro, do neném com a cara dela. Libera ela. Cê tá ocupando o espaço do amor da vida dela”.

A canção é interpretada por duas mulheres, Maiara e Maraisa, que ganharam projeção, segundo elas e outras do gênero intitulado “sertanejo universitário”, por abordarem temas do universo feminino.

A mensagem tem boa intenção, mas a letra traz uma passividade que não condiz com os tempos de emancipação feminina, o empoderamento proclamado nas redes sociais.

Libera ela?

Estamos modernas como nossa tecnologia demonstra, ou estamos como nas histórias do tempo de Moisés, quando as uniões eram arranjadas pelas famílias dos homens?

Será que continuamos esperando que decidam nossas vidas?

Em parte, parece que sim.

Há mulheres admiráveis, donas de seus boletos, e que, embora sejam conscientes de que são infelizes em seus relacionamentos, nada fazem para mudar a situação.

Os dias passam e elas continuam tristes. E ninguém percebe. O entorno já está acostumado (talvez, até elas mesmas) com o nível raso de amor compartilhado.

Neste momento, muitas devem estar ouvindo de seus parceiros coisas do tipo:
“Não sabe rir mais baixo?”
“Parece uma velha”
“Você nunca conclui seus planos”
“Não tem pulso forte com a criança”
“Vai sair arrumada assim para chamar a atenção de tudo quanto é homem?”
“Não gosto daquela sua amiga; melhor não sair mais com ela”
“Só sabe gastar dinheiro”
“Sua voz me irrita”
“Tá olhando para quem?”

São monólogos reais, comuns no cotidiano de machistas, misóginos brasileiros.

Mas, a pergunta que não quer calar é:

Por que uma mulher que pode trabalhar e buscar seu sustento, sem a cobrança social de tempos antigos, aceita ser tratada com indiferença e grosseria e até ser agredida fisicamente?

O lógico da sobrevivência não seria pular fora do barco que está afundando?

Por que esperar que outro alguém dê o comando para o salto, quando a água já está chegando ao nível do próprio pescoço?

Em vez de buscar salvação, ambas as partes optam pela convivência com ironias, ameaças, franzir de boca e rispidez nos diálogos mais banais no café da manhã.

E, assim, o relacionamento vai perdendo a conexão que antes era alimentada pela admiração mútua. Vira a relação superficial que foi caracterizada por Cazuza de “solidão a dois”: Meu mundo que você não vê / Meu sonho que você não crê.

O que começou de forma leve, apenas pelo prazer de estarem juntos, como acontece entre bons amigos, transforma-se em pesados papeis. O papel do namorado controlador; da esposa que organiza a casa; do marido que sai para beber; da mãe cansada e estressada.

A dificuldade de sair de um relacionamento tóxico assim talvez seja a esperança de que tudo mude, que volte a ser como antes. E pode até ser que mude, se algo for feito para isso. Terapia e espiritualidade costumam ajudar. Mas, cadê a atitude para a mudança?

Pode ser, também, que a toxicidade tenha se transformado em vício confortável para os dois. Acostumaram a reclamar um do outro, como ouvi certa vez de um casal: “É o nosso jeito de ser casado”.

E vão seguindo desse jeito, sorrindo para as redes sociais no Dia dos Namorados, até que um dos dois libere o outro deste tédio consentido e sem sentido.

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OUÇA!

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CITADOS NO TEXTO