Uma amiga que nunca recebe hóspedes em casa resolveu disponibilizar um de seus quartos no serviço de hospedagem Airbnb. Como ela mora sozinha, fui contra a ideia, e ela não falou mais sobre isso comigo. Meses depois, como num chá de revelação, criou um suspense e disse que precisava me contar uma coisa por chamada de vídeo. E veio com a notícia de que já alugou dez vezes o seu quarto. Dez vezes, repito. Ou eu sou apavorada demais ou ela é crédula demais. Fato é que não consigo me ver alugando um quarto da minha casa neste nosso país onde é comum maridos baterem em suas mulheres. Imagine dormir tranquila no mesmo espaço com quem nunca vi na vida. Não conseguiria. Mas ela está adorando a experiência que vem cumprindo o objetivo de conhecer pessoas e histórias interessantes. Não é apenas pelo dinheiro extra, que, aliás, é bem interessante mesmo, pois o aplicativo repassa o valor do aluguel antes de o hóspede chegar. E outra: você não tem que ser uma hospitaleira do tipo que recebe parentes, com preocupação com café da manhã, almoço e jantar. E nem é preciso deixar bilhetinhos e chocolates, como minha amiga faz. Ela faz assim porque ela é atenciosa assim. Até imagino que quem se hospedar com ela nunca mais deixará de fazê-lo. Se eu fico impressionada com alguns hotéis que deixam o bilhete com o nome da arrumadeira do quarto, imagina se encontro um cafezinho com chocolate e um recadinho com meu nome e desejo de sucesso? Minha amiga está alinhada ao conceito Disney de encantamento, pelo qual colocam leite e biscoitos para os ursinhos de pelúcia das crianças que se hospedam no hotel do parque.
Ela está fascinada com as duas últimas histórias das pessoas que recebeu. A primeira, uma atleta de basquete de 55 anos de idade. Viajou para participar de um campeonato. Foi e venceu. Entre um café e outro, compartilhou com minha amiga parte de sua história pessoal surpreendente, mas o inesperado surgiu com o hospede derradeiro.
Como em todas as experiências na hospedagem, ela trocou mensagens por áudio pelo whats, a fim de combinarem horários, chaves, essas coisas de quem mora com alguém e tem a rotina puxada fora de casa. O tom da voz, o jeito de falar e a educação dele já haviam contabilizado várias estrelinhas, mas quando se conheceram pessoalmente é que brotou o estranhamento bom.
Ela chegou no início da noite, quando ele estava no quarto com a porta fechada. Foi resolver suas coisas, tomar banho, etc e tal, e ele acordou, ainda com o terno e camisa social, roupa usual de quem trabalha em um Ministério do Governo Federal, em Brasília. Explicou para ela que nem deu tempo de tirar o paletó, de tão exausto. Sentou-se à mesa da sala e começaram a conversar por horas e horas e horas.
O papo fluiu como naqueles encontros raros quando alguém gosta dos mesmos assuntos que os seus, mas que não são assuntos fáceis de gostar, como praia e cerveja, e, sim, yoga, mecânica quântica, barras de access, poesia. Se é difícil encontrar mulheres que tenham afinidades com este universo, temos de reconhecer que não são assuntos que povoam o cotidiano de um homem. Sim, estou sendo preconceituosa, mas a culpa é da cidade onde moro que apresenta este percentual masculino limitado. A conversa fluiu para o conteúdo do tipo “a vida sempre quer nos ensinar alguma coisa”. Ela estava petrificada tentando entender o que mais a vida queria ensinar àquela altura dos seus quase 50 anos. Ainda mais vindo de um “menino” de 36.
Foram dois dias de encantamento, surpresas, arrepios e medo. A vida estava tentando desbloquear algo ruim que insistia em morar em sua alma. Minha amiga até deu uma ajudinha no início, mas saiu pela porta de emergência. O roteiro era bom demais para não estar na Netflix. Naquela noite da conversa, eles saíram para jantar fora e ele pediu para segurar a mão dela enquanto caminhavam pelas ruas. E mais pontos em comum foram descobertos. No dia seguinte, ela fugiu como um Forrest Gump. Deve estar correndo até agora. Levantou-se antes do sol e só voltou para a casa quando teve a certeza de que ele já tinha ido embora. Inventou tantos compromissos neste dia, que já pode ficar sem fazer nada por dois anos, que está tudo pago. E antes de você pensar que eles tiveram uma tórrida noite de amor, desista. Ficou só no passeio de mãos dadas mesmo. E isso foi suficiente para mexer muito com suas certezas.
Não conseguiram se despedir, mas ele enviou dois áudios com a leitura exata do que estava acontecendo: ela havia erguido uma barreira intransponível. Não permitiu viver alguma possibilidade boa.
O que ele não ficou sabendo é que o impacto da dor que ela vivera há alguns anos foi tão forte que o jeito de lidar com novos encontros é criando um limite de acesso. Ela tenta dezenas de métodos para sair do cativeiro criado pela desilusão, mas a verdade é que se acostumou com a proteção do muro. Como um sapo que vai se acostumando entre a passagem da água morna para a fervente e deixa de pular sem perceber que está morrendo.
No áudio que seu hóspede deixou, ele falou sobre as portas que a vida oferece todos os dias, mas que para abrirmos temos que girar a maçaneta. No caso deles, ela abriu a porta, só que deixou o vento batê-la de volta. O mistério desta vez, é que, por alguma razão, a porta ficou entreaberta.
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