O provérbio popular “Para conhecer alguém é preciso comer um quilo de sal juntos” serve para todas as relações, não só as afetivas.
É na dificuldade que a gente também testa o compromisso, por exemplo, do empregador. Descobrimos fácil qual a base que sustenta uma relação de trabalho quando a maré mansa vira mar revolto.
É possível atestar se os líderes agem como o dono do Titanic, que pulou no bote com crianças e mulheres, deixando 1,5 mil passageiros afundarem com o navio, ou se farão como nas brigadas de incêndio. Quem lidera é o último a sair do local em chamas.
Nos primeiros 15 dias de isolamento social devido à pandemia do novo coronavírus foi colocado à prova o quadro de valores que decora paredes de organizações brasileiras. Em geral, o quadro tem sempre o sensível valor: “As pessoas em primeiro lugar”, mas será verdade?
É fácil perceber numa crise quais são as pessoas que estão em primeiro lugar. É só analisar as alternativas elencadas no gerenciamento da crise e identificar em qual posição está a demissão. Se é a primeira hipótese, a máscara caiu junto com o quadro, que deveria ser alterado para “Farinha pouca, meu pirão primeiro” ou “Salve-se quem puder”.
Um líder real é capaz até de ocultar de sua equipe as dificuldades financeiras, a fim de não provocar nela a instabilidade emocional, o medo do futuro incerto, mas não considera a demissão em primeiro lugar sem uma justa causa. Parece justo transferir aos empregados os problemas gerados pela pandemia?
Existem empresas ameaçando demitir 50% de seu quadro sem ao menos levantar alternativas, como antecipação de férias, empréstimos, negociação salarial, remuneração variada, redução da carga horária, entre outras. Hipóteses utópicas? Pode ser, mas seriam cogitadas antes da demissão, num sinal de tentativa de preservar o empregado em primeiro lugar.
E isso vale para as organizações domésticas também. Empregadas e diaristas estão sendo afastadas do emprego porque é preciso evitar contágio social e isso é prudente a ser feito.
Na lógica empregatícia, já que ela não está trabalhando, não existe obrigação de pagar pelos serviços da doméstica. Mas, será que não existem outras alternativas com respeito ao ser humano que até bem pouco atrás era “o braço direito” dos moradores da casa?
A relação que a empregada doméstica desenvolve na casa do “patrão” é de maior proximidade do que a que ocorre numa empresa, já que ela participa da rotina pessoal de seus empregadores.
Como via de mão dupla, sabe-se também da rotina desta empregada, muitas das vezes arrimo de família. Na crise, deve-se desconsiderar todo este histórico?
Se o cenário fosse ajustado do mais forte para o mais fraco economicamente,
talvez tudo fluísse sem maiores traumas.
Se a empresa recebe incentivos do governo ou de bancos para não demitir o empregado, não tem por que o empregado demitir seu empregado doméstico.
Se a empresa manteve o salário integral do empregado que passou a trabalhar remotamente, não tem por que reduzir o salário do empregado doméstico que terá que se afastar integralmente, já que não tem como trabalhar remotamente.
Há exemplos positivos a serem copiados. Tem gente que suspendeu os serviços da empregada doméstica e dividiu as tarefas entre os membros da família, já que todos estão em casa.
Mas, ainda assim, continuará pagando integralmente para sua empregada. É como se o patrão estivesse pagando para trabalhar no lugar da empregada. São reflexões que a crise provoca.
Outro exemplo positivo é o de quem suspendeu o trabalho da diarista, mas em vez de pagar com dinheiro pelos dias em que ela não vai trabalhar, optou por oferecer uma robusta cesta básica para que ela consiga se manter até a normalidade da situação.
Cesta básica, esta, que o patrão conseguiu caprichar porque a empresa para a qual trabalha teve a iniciativa de dobrar o vale-alimentação a todos os milhares de empregados. Foco neste exemplo dado, pois é real no Brasil. Além de não demitir nenhum dos milhares de empregados, a empresa dobrou o valor do vale-alimentação!
Como sairíamos desta pandemia se todos agissem assim?
Imaginemos famílias que vivem de pequenas vendas informais e que moram em quitinetes alugadas. Diante da impossibilidade de renda desses inquilinos que estão vendendo quase nada, suponha que o locador ofereça um desconto no aluguel nos meses da pandemia, ainda que com negociação futura.
Imaginemos agora que um desses inquilinos que seria beneficiado pela proposta do desconto não seja trabalhador informal. É contratado de uma empresa que honra o valor das pessoas em primeiro lugar, não demitiu e nem atrasou salário.
Este inquilino poderia aproveitar a vantagem da redução do aluguel para si, mas imaginemos que ele dê uma olhada para além de sua quitinete e passe adiante seu percentual de desconto para o vizinho autônomo.
Seria solidariedade em cadeia, incentivo para mais ações entre amigos, familiares e sociedade como um todo. Todos comendo juntos o mesmo pirão salgado.