Pessoas que focam o lado positivo nas situações negativas são, na maioria das vezes, incompreendidas. Podem parecer egoístas, insensíveis ou mesmo alienadas da realidade caótica do mundo.

Deve estar escrito em algum lugar que seres cultos, inteligentes, solidários e atuantes na sociedade são os que mostram os horrores nossos de cada dia. A categoria das pessoas que veem a vida com esperança é permitida apenas para os religiosos, os seres desconectados da vida material. São seres especiais, nada a ver com a maioria de nós, portanto.

Talvez por isso quando alguém pergunta “Como estão as coisas?”, respondemos que está tudo bem, mas em seguida começamos a vasculhar na mente os casos que revelam o contrário.

– “Como estão as coisas?”

– “Está tudo bem, tirando esta dor de cabeça chata…”

Dito isso, pode-se dizer que está bem, afinal não é um bem na totalidade, tem aí uma dor de cabeça para compensar. E assim vamos respondendo e compensando. No emprego, tudo bem, apesar daquele chefe opressor. No casamento, tudo bem, apesar das contas do início do ano. Não contraiu a covid, mas na família, quase todos.

Mas, há quem não se deixe arrastar para o abismo das lamúrias. Quem prefira ver a metade cheia do copo, em vez de focar na metade vazia. Mas causa estranhamento.

Para alguns, prova de amizade é mergulhar juntos na escuridão da reclamação, em vez de apontar para a luz da saída. E se você apenas respeitar a decisão do amigo de querer permanecer no estado de vitimização, mas não compactuar, não alimentar mais histórias ruins e preferir as alternativas positivas, aí você vai perder algumas estrelinhas na categoria “melhor amigo”; pode até perder esta “amizade”.

Fato é que o negativo ainda atrai mais a atenção das pessoas. Vale mais falar à exaustão sobre os 300 mil mortos no Brasil, vítimas da covid-19, do que celebrar os 10 milhões de brasileiros que conseguiram vencer a doença.

O negativo rende mais assunto nos encontros, mais compartilhamentos nos grupos virtuais, e isso deve até satisfazer o mensageiro da notícia ruim, porque provoca a sensação ilusória de poder. O poder de ter, em primeira mão, a notícia do acidente. Renato Russo já ironizava isso na canção Metrópole:

Todos querem ver e comentar a novidade. Tão emocionante um acidente de verdade. Estão todos satisfeitos com o sucesso do desastre. Vai passar na Televisão”.

Sugerir a visão do copo meio cheio numa pandemia pode parecer insensibilidade, coisa de quem não tem familiar no hospital, mas a verdade é que em algum momento da vida todas as pessoas passam por situações de perdas; todos já tiveram familiares internados em estado grave, acometidos por câncer, por exemplo, ou mesmo foram surpreendidos por mal súbito. Em casos graves assim, claro que pensamos e falamos na doença, na fatalidade, mas podemos reagir, enxergando as coisas como são e ir buscar soluções que minimizem a dor.

Precisei fazer isso perante duas grandes perdas: do meu irmão, que morreu aos 40 anos por infarto e, um ano depois, do meu pai, com 73, de câncer. A doença dele agravou-se devido à depressão desenvolvida por tanta tristeza pela morte súbita do filho. Em mim, a sensação foi a de ser nocauteada duas vezes por um lutador de MMA em um intervalo de um ano. Exatamente um ano. Setembro.

Quando o estágio da doença avançou no meu pai, o desespero foi grande, pois não havia vaga nos hospitais. Sim, em 2013 também não havia fartura de leitos de UTI no Brasil. O que seria mais produtivo a fazer? Ir para as redes sociais agredir o PT pela falta de UTI, ou correr contra o tempo em busca de soluções para salvar a vida do meu pai? Marquei letra B.

Nestas encruzilhadas da vida, temos a certeza de que a união de forças é o mais sábio a fazer. Amigos da esquerda e da direita mobilizaram suas redes de contatos em busca de um leito. Fiz errado em aceitar ajuda de pessoas com ideologia política diferente da minha? O que você faria?

Eu optei em ver o copo meio cheio, em alimentar a esperança por um leito. Meu pai estava no corredor, entrando em coma. Não havia tempo para discussões inúteis e desagregadoras. E assim, duas pessoas, de posições políticas antagônicas, conseguiram encontrar uma vaga para ele. Duas pessoas que tiveram empatia. Duas pessoas que jamais esqueceremos. Meu pai foi internado, mas não resistiu.

Acredito que ele já havia partido ainda em vida, desde a morte do meu irmão, um ano antes. Ele não queria mais estar aqui. Os dois eram muito ligados. Acredito nisso. Ao vê-lo com um tubo de alimentação, em coma, pensei mesmo que ele não queria estar ali. Que aquele não era o Evaldão que fazia a gente rir pelas implicâncias com a voz de João Gilberto. Que aquele corpo inerte não tinha absolutamente nada a ver com o ex-jogador de basquete da juventude e o apaixonado pelo Vascão, embora xingasse muito o próprio time. Não, não era ele. O cara da cerveja de todo fim de semana, ouvindo Nelson Gonçalves, não era aquele.

No fim de mais um dia de internação, eu pedi para ficar sozinha com ele. E iniciei meu ritual de despedida do meu pai. Pedi perdão pelas birras de adolescente, pelas decepções, pelas mágoas que por ventura tenha causado sem perceber, já que ele não tinha o perfil de falar sobre o que sentia. E agradeci muito. Agradeci pela vida; pelos anos em que trabalhou para que eu pudesse estudar; pelos apelidos que ele inventava para os meus namorados para, assim, disfarçar o ciúme; pelas vezes que me deixou na esquina das festinhas para que eu, adolescente, não parecesse uma menina bobona chegando com o pai protetor. E por tudo o mais que vinha à minha mente, desde coisas que poderiam ser banais aos olhos dos outros, como o meu chocolate preferido que ele deixava todos os dias em cima da geladeira.

É que quando ele voltava do trabalho, eu e meu irmão já estávamos dormindo e quando ele saía no dia seguinte, muito cedo, ainda não havíamos acordado. Todos os dias nós procurávamos o chocolate no mesmo lugar, com a certeza de que estaria lá. Era nossa comunicação com ele. Uma forma que ele achou de mostrar que pensou em nós, embora não tivesse esta pretensão. Ensinava na prática que existem várias formas de amar.

Depois desta longa conversa com meu pai inerte, intubado e de olhos fechados, eu garanti para ele que não desampararia minha mãe e que cuidaria do neto dele com a mesma prioridade que ele concedeu aos filhos. Que eu ficaria bem e que ele não se preocupasse com mais nada, pois havia feito o melhor para a sua família. Beijei sua testa e saí segurando o choro para minha mãe não perceber.

Na primeira esquina adiante, parei e chorei muito. Algo me dizia que as horas estavam escapando de nós. O copo da esperança estava esvaziando. Lembranças jorravam, assim como o medo de seguir sem a referência dele. Às cinco horas da manhã, fui acordada com a notícia de que ele havia partido. Encerrava a história dele por aqui.

Quando só existiam algumas gotas no copo da alegria, senti muita gratidão por ter falado tudo o que eu queria para ele. Agradeci muito a Deus por ter aliviado a angústia que meu pai deveria estar sentindo por ter que deixar suas mulheres sozinhas. Agradeci por Deus ter encerrado o sofrimento dele com aquele tubo e aquela inércia. Agradeci por todos que ajudaram no hospital e lamentei pelos que não ajudaram, como um médico cruel que encontramos no meio do caminho. E lembrei da promessa que fiz com relação aos cuidados com os que ficaram. O copo do amor voltou a encher.

Nesta pandemia, também vimos muitos exemplos de meio copo de amor. As redes mostraram o caso de um filho que estava com pai e mãe internados e que, ao saber de uma pequena melhora no rim do pai, foi para a janela do quarto onde a mãe estava internada para gritar a novidade boa, na esperança de animá-la.

Outro caso foi o de um familiar que escreveu palavras de afeto no chão do estacionamento do hospital para que pudessem ser vistas do alto das janelas. E vários são os registros das equipes de saúde dos hospitais tocando violão, cantando e dançando para os pacientes, além de improvisarem festas de aniversário nos leitos.

Para que essas tentativas de resgate da alegria?

Estão sendo egoístas, sem empatia?

Ou tentam mostrar a beleza da vida que ainda existe?

Antes de tachar de utópicas as tentativas de ver a vida com a lente positiva, vale a pena conhecer a história do fundador da Logoterapia – a linha da psicoterapia centrada no sentido da vida, o psiquiatra vienense Viktor Frankl, falecido em 1997.

Durante quase três anos, Frankl foi prisioneiro de quatro campos de concentração nazista, incluindo o mais temido deles, o Auschwitz, na Polônia.

Nos campos, os presos eram obrigados a comer comida estragada, a realizar trabalho escravo e a viver em risco iminente de morte por câmaras de gás.

No auge da desesperança, pessoas se atiravam contra as cercas elétricas para acabar de vez com aquele sofrimento.

Mas, em meio ao horror, atitudes solidárias chamaram a atenção deste psiquiatra, como a de um comandante nazista que tirou dinheiro do bolso para comprar remédio para prisioneiros, ou a dos presos que dividiram a pouca comida que tinham.

Por que nem todos agiam da mesma forma, se as circunstâncias eram iguais para todos?

Frankl escolheu analisar as reações de todos e, com isso, estava mudando o final da sua própria história, pois tirou o foco do seu sofrimento e mirou sua atenção para observar a resiliência dos presos, inclusive a sua. “Enquanto não houver 100% de chance de eu morrer, eu viverei”, era seu lema de vida. E foi assim que a teoria que ele havia iniciado antes de ser preso tomou forma do livro vendido até hoje intitulado “Em busca de sentido”.

Frankl saiu da prisão aos 40 anos de idade e morreu aos 92. Dedicou, portanto, 52 anos ao estudo da Logoterapia, afirmando à certa altura: “Na nossa vida nós dependemos mais das nossas decisões do que das nossas circunstâncias”.

Todos os dias, o copo da nossa vida é servido. A decisão de como encará-lo é individual e intransferível.

PARA OUVIR O TEXTO:

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TEM A VER: ENTREVISTA SOBRE O SENTIDO NA VIDA

Por que Buscar o Sentido no Trabalho, na Vida?

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CANÇÃO CITADA NO TEXTO: