Ele é daquelas pessoas que a gente não consegue definir fácil. De família árabe, sua vida é naturalmente com fartura e status. Fez seu nome na gastronomia organizando grandes eventos para famílias abastadas financeiramente.

Porém, é o mesmo que diz que sente sua veia pulsar mais forte num barquinho de pescador no meio do rio Amazonas.

O prazer dele é caçar tesouros gastronômicos escondidos no Brasil. Extrair da simplicidade de um frutinho da floresta uma combinação equilibrada com ingredientes já testados.

O sorriso nas fotos de suas expedições sinaliza que, de fato, estava feliz sentado no chão, aprendendo a fazer cestos de palha em casas de pau a pique nas comunidades ribeirinhas.

Por outro lado, ele foi dono de um restaurante em hotel 5 estrelas, é o criador de um evento anual com participação de grandes chefs do Brasil e foi convidado para participar de competição famosa da TV nacional.

Com tantos arquivos de ouro a serem gravados em sua memória, por que não deletou uma simples frase que uma pessoa comum (no caso, eu) lhe dissera no início dos anos 2000?

Meu primeiro encontro com este chef foi por motivo de trabalho. Fomos contratados para um evento, cada qual na sua área de atuação, e não nos demos bem nos primeiros minutos. Bem ao estilo da canção do Nando Reis: “Você me achava meio esquisito, e eu te achava tão chata”.

Mas à proporção que o trabalho avançava, derrubamos as barreiras do orgulho e nasceu a admiração mútua.

Não tinha como contestar a perfeição que ele buscava na apresentação dos pratos, a excelência do sabor e o cuidado com os convidados.

Ele também passou a não interferir nas estratégias de organização de uma coletiva de imprensa. Cada qual no seu quadrado.

Concluímos o evento com louvor, recebemos o reconhecimento do cliente e continuamos a amizade.

O esquisito contratou a chata para assessorar um empreendimento, e depois foi minha vez de contratá-lo para a comemoração de cinco anos da empresa que eu tinha à época. Foi quando apertamos o nó da confiança.

No dia da festa tão aguardada por mim, tudo estava como eu havia planejado. Cerca de 500 convidados, ambientação, performances, serviços e apresentação da mesa impecáveis. Eu era só alegria.

Após a primeira hora do evento, escuro total. Faltou energia.

A casa era uma boate que adotava todos os cuidados com iluminação de emergência. Mas a energia backup tinha limite de tempo.

Apreensivo, o administrador disse que as luzes de emergência segurariam por apenas 40 minutos.

40 minutos…

Meses de organização, entre captação de recursos, convites, divulgação, homenagens, para apenas 40 minutos de festa.

Após 30 minutos, eu saí da cena dos convidados e fui para um cantinho escondido. Ali, eu chorei e conversei com Deus sobre o porquê daquele teste.

Quando estava me torturando com autocrítica exagerada, meu amigo chef apareceu:
– “Estava procurando por você pela festa inteira. O que está fazendo aqui?”
– “Só temos energia por mais dez minutos. Estou muito nervosa e não queria passar isso para as pessoas. Acho que nossa festa acabou”
– “Aconteça o que tiver de acontecer, a festa já é um sucesso. E eu estarei aqui com você até o final”

Se existe algo mais tranquilizador do que ouvir “Estarei com você até o final”, eu nunca ouvi.

Naquele instante, foi como se toda a rigidez do meu corpo se desprendesse. Eu não estava mais com medo, estava segura, confiante, e decidi que voltaria para a festa em consideração às 500 pessoas que estavam ali, prestigiando a caminhada da minha empresa.

Como um filme, um milagre, faltando 30 segundos (sim, eu estava contando cada segundo!) para a luz de emergência apagar de vez, tudo se fez luz.

A energia voltou com toda força!

Convidados festejavam com brindes, fotos, abraços e a música retomou seu lugar de destaque.

Eu senti muita gratidão e, de longe, procurei o olhar feliz do meu amigo cúmplice.

Depois disso, nos vimos poucas vezes. Ele foi ganhar o mundo. Eu continuei na mesma cidade, mas mudei o número do telefone e fechei a empresa.

Nada disso é problema na era das redes sociais. Duas décadas depois, ele me achou e, com emoção na voz, enviou o seguinte áudio:

“Eu nunca esqueci daquele dia na festa, quando você olhou nos meus olhos e disse: você é gente“.

Fiquei parada sob o impacto deste áudio. Pensei em como somos treinados desde pequenos para conquistar estrelas, medalhas, certificados, diplomas, títulos, cargos e prêmios.

Pensei na sensação boa que é receber dos outros um atestado de que somos bons no que fazemos, que somos capazes de atingir metas e até de superar expectativas. Sim, é mesmo muito bom.

Mas, para além de todos os reconhecimentos externos, ainda nos emocionamos quando alguém mergulha no humano que há em nós.

Neste áudio, ele disse acreditar que existem encontros determinantes na vida, pois que aquela frase o fez ver que ele era mais do que as avaliações de suas habilidades e competências.

Também dou atenção aos encontros. Existem pessoas que, mesmo que fiquem pouco tempo em nossas vidas, desviam nossa rota, tiram véus, abrem janelas, dizem algo que demonstra a crença em nós, e o impossível parece fácil.

Meu amigo carrega o “Você é gente” como um mantra. Ajuda a alertá-lo quando tentam confundi-lo com açafrão, canela, areia, pó, nada. Ele é gente. Como a gente. Isso é o que importa.

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