Algumas dedicatórias nos livros que ganhamos traduzem períodos da nossa vida. São como código decifrado somente pelas pessoas envolvidas.

Passar adiante um livro com uma dedicatória especial seria como espalhar segredo de amigo. Uma traição.

Um dos que guardarei para sempre é Mar sem fim, que narra a trajetória da primeira volta ao mundo do navegador brasileiro Amyr Klink.

Este título não veio à toa para mim.

Não era meu aniversário nem Natal, e eu nunca havia mencionado o nome do Klink a quem me presenteou.

Trabalhávamos juntos e, nos intervalos, sempre conversávamos sobre a vida que gostaríamos de ter.

Ele era extremamente bem-humorado, bem relacionado com todos. Passava a impressão de que estava muito feliz.

Impressão.

A mim, confessara o tédio que sentia por trabalhar em algo aquém do seu potencial. Suas palhaçadas eram úteis para darem a si próprio um pouco de graça à rotina sem graça.

Em um dia qualquer, ele chegou à minha mesa com o livro sobre a jornada do navegador que deixou esposa e duas filhas pequenas em terra firme do Brasil e viajou sozinho, durante cinco meses, por mares da Antártica, considerados como os mais perigosos do planeta.

A viagem não foi decorrente de contratação de serviço ou projeto de trabalho. Foi uma aventura que ele quis realizar, solitariamente, para sua reconexão interior, conforme descreveu sobre o dia de seu retorno:

“Não era a sensação de uma batalha ganha, de uma luta em que os obstáculos foram vencidos. Muito mais do que isso, era o prazer interior de ter realizado algo que tanto desejei, de ter feito e visto o que fiz e vi”.

Na dedicatória que meu amigo fez para mim, outra citação do navegador: “Para se chegar aonde quer que seja, é preciso, antes de mais nada, querer. Pior que não terminar uma viagem, é nunca partir”.

Perceba a sutileza deste trecho pinçado em um livro de 300 páginas…

Depois das aspas do Klink, ele finalizou por conta e risco: “Boa viagem!”.

Qualquer pessoa que lesse esta dedicatória num livro sobre viagem, imaginaria que eu estaria prestes a pegar o primeiro avião com destino à felicidade.

Mas a viagem ali era simbólica. Só nós entendemos.

Curiosamente, pouco tempo depois, foi este amigo quem fez uma mudança radical. Foi morar num país desconhecido e seguiu uma nova profissão.

É que, em geral, o que dizemos e desejamos paro o outro estamos dizendo e desejando para nós mesmos.

Continuando a busca pelas dedicatórias, encontrei outra mensagem de cumplicidade no livro de crônicas Pensar é transgredir da Lya Luft:

“Espero que com este livro você possa transgredir a ordem do superficial que nos esmaga”.

Existe um pouco de mim aí nesta dedicatória, mas o “nos” também abraça quem presenteou.

Lembrei dos questionamentos que fazíamos sobre o que é viver dentro do que esperam de nós, sobre máscaras pesadamente carregadas, sufocando a leveza de quem já fomos.

Penso que a ordem superficial que nos esmaga é o mesmo que viver de acordo com as regras alheias, ainda que não façam sentido para o que acreditamos.

Para viver de verdade, além de amar-se, amar, ser amado e ter esperança, Lya Luft sugere:

“É preciso questionar o que nos é imposto, sem rebeldias insensatas mas sem demasiada sensatez. Saborear o bom. Mas aqui e ali enfrentar o ruim. Suportar sem se submeter, aceitar sem humilhar, entregar-se sem renunciar a si mesmo e à possível dignidade.

Sonhar, porque se desistimos disso apaga-se a última claridade e nada mais valerá a pena. Escapar, na liberdade do pensamento, desse espírito de manada que trabalha obstinadamente para nos enquadrar, seja lá no que for.

E que o mínimo que a gente faça seja, a cada momento, o melhor que afinal se conseguiu fazer”.

Continuei abrindo livros.

Prestei atenção em alguns títulos.

Por vezes, eles já trazem a mensagem que precisamos, como o Apenas respire que ganhei de uma amiga querida e que não tem nada a ver com asma ou rinite.

Foi assim também com o livro que ganhei quando meu cachorro morreu.

Chicó era cuidado como um filho. Eu o chamava de pré-gente, tal sua sensibilidade quase humana. Convivemos durante 14 anos e continuo tendo por ele um imenso amor.

Vendo minha tristeza após seu brusco falecimento, vítima de um inofensivo chocolate amargo (só depois soube que chocolate age como veneno no organismo de um cão), uma amiga me deu um livro, sem dedicatória.

Ao desembrulhar o presente, o título saltou: Deixe-me partir.

Com fundamentos da doutrina espírita, o livro explica que quando nos apegamos demais às lembranças dos seres queridos que partiram desta existência, podemos atrasar a evolução deles.

No capítulo sobre os animais de estimação, consta que após a morte do animal “o princípio inteligente que havia nele é imediatamente utilizado para animar novos seres”.

Sorri ao imaginar Chicó animando um novo ser, e deixei Francisco de Assis cuidar dele.

Por falar na doutrina espírita, foi por meio de um livro, O Evangelho segundo o Espiritismo, que iniciei minha caminhada nesta direção.

Uma pessoa a quem muito admiro fez a seguinte dedicatória:

“Que este livrinho seja lanterna que ilumina os teus caminhos na busca da verdadeira felicidade”.

E, assim, numa breve tarde de sábado, diante de uma pequena pilha de livros que jamais doarei ou emprestarei, reforcei a crença que o mal não domina a humanidade.

Em poucas horas, eu revivi demonstrações de pessoas que só desejaram o bem para outra.

Imagine quantos desejos para o bem estão registrados nos livros em todo o mundo, incluindo os da sua estante?

Senti vontade de agradecer a todos os que escolheram um título de acordo com meu momento. Que pararam alguns minutos para escrever uma dedicatória que impulsionou, acalantou, alegrou meus dias.

A vocês, dedico este texto.

Saibam que suas mensagens continuarão viajando comigo pela estrada dos sonhos.

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CITADOS NO TEXTO 

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