Faça de conta que recebeu um cartão de crédito ilimitado com garantia de quitação durante o resto da sua vida.

Sabendo que tudo já está pago, como usaria seu tempo todos os dias?

Há quem diga “Nunca mais trabalharia”, “Viveria viajando”, “Ajudaria as pessoas”.

Supondo que seja assim, depois de ter viajado pelo mundo, ajudado a família e os amigos e escolhido projeto social para apoiar, você buscaria aprender alguma coisa pelo simples prazer de aprender?

O exercício não é tão fluido porque nossas escolhas estão condicionadas ao “para quê”.

Para que perder tempo aprendendo grego se o inglês é a língua universal?

Se a promoção no emprego depende das especializações, então justifica-se o MBA, o Mestrado, o Doutorado. É mais fácil manter a motivação acesa quando o foco está nos rendimentos subindo.

Mas, vez ou outra, poderíamos deixar de lado os objetivos específicos do nosso projeto de vida e deixar falar a voz do coração.

A boa notícia é que podemos começar sem ter que esperar pelo cartão ilimitado.

Tem curso para todo tipo de gosto na internet, e os seus produtores sempre jogam a isca oferecendo uma semana gratuita.

Mordi uma dessas para o curso de piano. Ok, não tenho piano, mas isso é só um detalhe. A pretensão não era a formação, mas satisfazer a vontade que sinto desde a infância, abafada pelo “para quê”.

Para que aprender piano se não poderei carregá-lo? Melhor o violão.

Deveria ter feito uma segunda pergunta: Terei que carregá-lo para quê? Mas, preferi seguir o óbvio, tentei fazer aulas de violão. Não gostei. Então, encarei o prazer de aprender.

Minha primeira aula de piano provocou uma onda indescritível de satisfação. Como pude viver sem saber que as teclas pretas não estão sobre as brancas apenas para darem charme ao teclado? Que, embora agarradas, cada uma tem seu som, sua nota?

Como eu não conseguia ver antes o conjunto de cinco teclas pretas, formado por duas e três teclas repetidamente, formando um padrão?

É fascinante a descoberta do que sempre esteve à mostra. É como tirar um véu, abrir os olhos.

Suspendi as aulas até adquirir um teclado para poder treinar, e tudo bem ter parado o curso. Não recebi sinal vermelho no meu farol da promoção. Saí da aula como entrei. Sem alarde, sem culpas, sem represálias. Um dia, retomarei.

Outro curso fora da curva dos meus porquês foi sobre aromas de perfumes. Tinha a curiosidade de saber por que preferimos um cheiro a outro.

No meu caso, tenho ojeriza a perfume doce, floral. Queria saber a razão, já que o adocicado tende a ser o preferido das mulheres.

O curso esclareceu o que eu já não lembro agora, mas fiquei convencida de que não há nada anormal comigo e parei por aí. Não tinha a intenção de produzir essências, já havia aprendido o que queria sobre os aromas cítricos, amadeirados, doces.

Também passei pela experiência essencial no curso livre de Filosofia. Nada a ver com o curso tradicional de universidade. Queria apenas conhecer os que conhecem a si mesmos.

Não liguei a mínima para o certificado de conclusão que recebi. Valeu mais à pena desconcertar meu professor filósofo quando questionei sobre como um trabalhador comum, com contas a pagar, pode alcançar a serenidade de um Dalai Lama.

É que existe toda uma estrutura econômica para manter o Dalai Lama, que precisa estar livre de preocupações materiais. Assim, ele não se preocupa em pagar conta de energia, não compara preço do arroz e até suas vestimentas aparentemente simples, com metros de tecidos enrolados pelo corpo, não é ele quem as compra.

Perguntei ao professor se a ameaça do corte de energia não pode desviar o sujeito do caminho da tranquilidade, mas ele ficou visivelmente perturbado com a pergunta materialista.

Sua admiração pelo modo de vida de um Dalai Lama estava cristalizada. Somente alguém que estivesse ali sem pretensão alguma de receber boa nota de comportamento poderia abordar uma irrelevância dessas.

Ele disse que eu estava equivocada, pois os problemas de um Dalai são muito maiores do que uma conta de energia. “Ele enfrenta grandes questões entre nações”, argumentou.

Claro que não desmereceria a missão grandiosa do líder dos budistas, referência de compaixão. O atual Dalai (Tenzin Gyatso),  recebeu, inclusive, o Prêmio Nobel da Paz.

Há mais de 40 anos ele é refugiado político na Índia e luta pela libertação de seu país, o Tibet, da China. É uma grande missão, sem dúvida. Viaja pelo mundo levando ensinamentos de não violência, o que só isso já seria um porquê impagável.

Só queria trazer a filosofia para o cotidiano de um trabalhador brasileiro que vê seu salário acabar antes do fim do mês.

Para abaixar minha bola, o professor poderia ter citado o que disse o Dalai no livro “Iluminando o caminho. Nossa busca pela felicidade”:

“Nossos próprios problemas parecem ser menos importantes quando pensamos mais nos outros. Nossa mente e visão se ampliam. Eles continuam os mesmos, mas nossa atitude muda, fazendo-nos acreditar que ´posso lidar com isso´; por outro lado, uma atitude extremamente egocêntrica limita muito a nossa mente e, nesse espaço reduzido, os problemas parecem ser realmente insuportáveis”.

Isso faz muito sentido. Limitar nosso olhar para os nossos problemas do cotidiano favorece a vitimização. Por alguma razão, passamos a achar que o mundo foi criado exclusivamente para nós e deve nos servir. Quando a realidade se apresenta, com seus enigmas básicos, falta a musculatura para segurar a barra, e aí vem o lamento, a reclamação sem fim, a tristeza, a raiva do mundo.

Talvez se incluíssemos em nosso dia mais vivências livres, poderíamos perceber mais sutilezas no entorno. Seria um tempo para perguntas despretensiosas, sem medo de errar e sem ter que impressionar a turma. Apenas pelo exercício de provocar a curiosidade que mora em nós.

Alcançaríamos um contentamento profundo, mais motivos para agradecer do que reclamar. E se a conta da energia chegou, significa que tivemos energia para usufruir.

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IDT EM ÁUDIO

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IDT INDICA

Iluminando o caminho. Nossa busca pela felicidade (Dalai Lama)

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CITADO NO TEXTO