Passei uma virada de ano em um hotel fora da cidade onde moro, e ao subir para o mezanino para ver os fogos de artifício havia uma única mesa redonda com cinco lugares. Nela, duas mulheres conversando e bebendo. Uma, prosecco. A outra, long neck. Pedi licença para sentar enquanto aguardávamos a emoção da virada do ano e puxei um papinho furado.

– Vocês são de onde? 

Na minha limitada cabecinha provinciana, hóspedes são de outra cidade.

– Daqui mesmo.

!!

Meu espanto foi porque o hotel não tinha festa de réveillon. Nada, nem uma musiquinha pedindo paz no coração, nem TV com a virada da Globo. O mezanino era o desespero de quem queria ver os fogos dos outros porque naquele hotel nem incenso teve. Então, o que faziam aquelas duas mulheres passando a noite de réveillon num hotel da sua própria cidade sem festa alguma? Se era para ficar num quarto, não seria melhor o da própria casa, e de grátis?

Talvez elas quisessem ficar a sós, um réveillon romântico, pensei. E eu ali atrapalhando pedindo para sentar com elas. Quis saber mais, lógico.

 – Vocês estão juntas? (típica pergunta de turista cara de pau, que se acha no direito de fazer qualquer pergunta intrometida pela certeza que nunca mais verá as pessoas com quem encontra).

– Nós nos conhecemos agora.

!!!!

Agora lascou foi tudo, pensei mais uma vez…

A ideia de ficar sozinha na noite de réveillon em um hotel sem alegria alguma surgiu na mente de duas mulheres que nunca tinham se visto?

– Sério?

– Sim. Eu estava desde cedo aqui tomando meu prossecco e ela chegou há pouco tempo para ver os fogos. Estamos conversando desde então.

Depois dessa abertura, me senti autorizada a querer saber mais sobre estas mulheres donas de si e é impressionante como tem tantas vidas interessantes ao nosso redor e que a gente nem faz ideia porque não dá abertura para o outro se abrir.

Uma delas, a do prosecco, é bióloga e fiquei maravilhada com sua consciência ambiental. Falou muito dos projetos em que ela está envolvida e, por coincidência, já havia prestado serviços para a empresa para onde eu trabalho, a quilômetros dali.

Extremamente simpática, de riso fácil, ela parecia livre, falava e bebia o tanto que quisesse. A outra, mais tímida, era da área de Tecnologia da Informação. Falou menos, mas o suficiente para provocar um ambiente confortável. Contou sobre seus projetos também e, aos poucos, a mesa foi ficando cheia. Chegaram meus amigos e familiares.

Outros hóspedes subiram para também ver os fogos, incluindo um casal que estava ali comemorando um ano de namoro. Contaram animados que se conheceram no trabalho, mas que nunca haviam olhado de forma romântica um para o outro. Foi de repente que o interesse surgiu e estão juntos e felizes preparando o casamento. Uau! Quantas histórias em tão poucos minutos de um ano.

Após os fogos, o espaço foi ficando vazio. A bióloga não aguentou a rasteira de duas garrafas de prosecco. Ela baixou a cabeça sobre a mesa e não acordava de jeito nenhum. Balançamos, sacudimos, deu até medo. Quando ela reagiu, veio junto a vontade de colocar para fora o que tinha ingerido. E quem ajudou? A melhor amiga da noite. Não sei de onde a amiga tirou um saquinho. Agiu rápido como uma analista de TI.

Terminamos esta noite ajudando a bióloga a chegar ao seu quarto. Depois, cada um tomou seu rumo.

No dia seguinte, no café da manhã, a vi de longe. Estava ainda mais bonita. Cabelos ruivos, cacheados. Um vestido floral, de alças, e longo. Seu olhar estava vago, olhando longe, para o nada. Ficou imóvel assim por algum tempo e preferi não ir falar com ela. Tive receio de que estivesse com ressaca moral, com vergonha. A minha presença poderia constrangê-la.

Mas ela veio por trás de mim e disse:

– Oi! Estou com muita vergonha de vocês. Acho que estraguei a festa de todos, não foi?

– Vergonha? Eu admirei tanto você, de estar ali fazendo o que queria fazer. Não tem nada de pedir desculpas. E este seu vestido é lindo.

Ela riu e foi embora. Nunca mais a verei. Deve ter achado que a elogiei somente por educação. Não foi. Que seja um ano feliz para ela e para todas nós que tentamos a cada dia romper com os tabus sobre o que uma mulher pode e não pode fazer.