Cena 1: Dia de feriado nacional. Crianças na faixa etária de 12 anos jogam bola num espaço mínimo que encontraram liberado no condomínio fechado onde moram, uma vez que as quadras estão interditadas.

Cena 2: Por um chute descontrolado, a bola atinge uma mulher de seus 35 anos de idade. Enfurecida, a mulher toma a bola das crianças e some da cena.

Cena 3: O grupo protesta pela devolução da bola: “Ladra! Ladra!”, gritam as crianças.

Cena 4: A mulher alimenta sua raiva até chegar ao seu apê, onde fura a bola e volta à cena da confusão para entregar o resultado de sua vingança.

Cena 5: As crianças esbravejam e xingam mais ainda a mulher, que, acuada, anuncia que vai chamar seu marido.

Cena 6: O esposo surge na roda das crianças para tomar satisfação. No grupo, está uma menina falante que defende seus amigos da atitude da mulher.

Cena 7: Descontrolado, este senhor vira-se para a menina, agarra sua gola da camiseta e puxa a garota pelo pescoço. A atitude causa revolta nas crianças e nos demais vizinhos atraídos pela confusão.

Cena 8: A mãe de um dos meninos do jogo aproxima-se para saber o que está acontecendo e inicia discussão com o senhor-valentão-covarde.

Cena 9: O valentão covarde parte para o segundo round e empurra a mãe do menino, causando mais espanto e indignação aos que assistiam ao espetáculo dos horrores.

Cena 10: A mulher rasgadeira de bola tenta convencer os vizinhos de que fez o certo: “Furei mesmo a bola. Estou no meu direito de ter tranquilidade onde moro”.

Cena 11: A Polícia chega ao condomínio e levanta o ocorrido. Seguranças informam que foi desentendimento de jogo de futebol, tentando minimizar a gravidade da violência e contrariando as testemunhas.

Cena 12: Crianças e moradores presentes desmentem os seguranças e relatam aos policiais as agressões do senhor-valentão covarde e da sua esposa rasgadeira de bola.

Todos os envolvidos acompanham os policiais até a delegacia, e o final, você decide.

Não se sabe o que aconteceu com os envolvidos. Logo que o carro da polícia saiu, vários grupos foram formados no condomínio com opiniões sobre a história.

Em comum, a crítica pela intolerância de dois adultos com crianças que estavam há cinco meses trancafiadas em seus apartamentos, devido ao isolamento social causado pelo novo coronavírus.

Neste teatro do absurdo, uma reflexão da qual não podemos fugir é sobre o que estamos aprendendo com a ameaça fatal de uma cruel pandemia.

Daremos mais valor à convivência social ou optaremos por regredirmos ao mundo selvagem, às reações inconscientes comandadas pelo instinto?

As crianças encontraram um local inadequado para jogar bola, na passagem de pedestres?

Sim, erraram. Mas…Um erro não conserta o outro, isso é o que eu penso, cantou Roberto Carlos, em O Progresso.

Imagine como esta história poderia ter acabado, se nas famílias da criança puxada pelo pescoço e da mulher empurrada houvesse pessoas com perfil violento?

E se eles surgissem armados com cerca de 20 crianças ao redor?

Embora este não tenha sido o final da história, ficou registrada outra violência na memória dos pequenos: adultos resolvem problemas com força física.

A estas crianças poderiam ser apresentadas as armas de luta do líder político indiano Gandhi (mahatma). Nos anos 40, ele defendeu, e conquistou, a independência de seu país da Inglaterra sem um único empurrão ou puxavão de pescoço.

Durante 20 anos ele defendeu a libertação de seu país, usando manifestações pacíficas e desobediência às leis que considerava injustas. Seu exemplo mostra que não agredir o outro fisicamente não significa passividade.

“Justifico plenamente a não-violência e considero-a possível nas relações entre os homens e entre as nações; mas não se trata de uma renúncia à verdadeira luta contra a malvadez”, ressaltou ele, certa vez.

“Pelo contrário: a não violência, como eu a entendo, é uma luz mais ativa e mais verdadeira que a vingança, que por sua natureza aumenta o mal”.

Por ironia, Gandhi foi assassinado a tiros, em 1948, um ano depois da independência da Índia, por quem discordava de seus métodos. O assassino foi condenado à pena de morte, numa sucessão de violência.

A pergunta que poderíamos fazer para evoluir nossa consciência na Terra é: qual a razão para viver?

Apenas existir?

Seria muito pouco para o projeto grandioso de um criador universal.

Plantar a ideia de consciência de paz na mente das crianças poderia ser um caminho, pois a desesperança já está rondando o cotidiano delas, no que deveria ser um divertido jogo de futebol.

Além de ele não poder bater em criança, ele bateu numa criança mulher. Ele errou duas vezes!, disse um potencial defensor dos direitos humanos, de dez anos de idade.

É, mas disseram que ele é advogado…, respondeu outro, de mais idade.

O que é advogado?

O cara que conhece as leis. Duvido que vai acontecer alguma coisa com ele.

É sempre assim. Quem tem poder acha que pode fazer tudo, emendou um brasileirinho sem fé no próprio país.

Mesmo descrentes na justiça aos poderosos e sem conhecerem o advogado Gandhi, podemos aprender com estas crianças que não se omitiram e agiram como o pacifista ensinou:

“Não devemos esquecer que o mal é alimentado com a colaboração, querida ou não, do bem. Só a verdade se mantém por si só. Devemos vencer o adversário isolando-o completamente e privando-o da nossa colaboração”.

A omissão do bem colabora com o mal. Lutemos como garotos por sua bola.

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CITADO NO TEXTO

O Progresso (Roberto Carlos)